Por Habacuque Villacorte – Rede Alese
Em uma solenidade que se estendeu até o início da tarde dessa quinta-feira (5), a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa outorgou as Comendas Jacinta Clotilde e Abdias Nascimento, ainda em comemoração ao Dia Nacional da Consciência Negra e pela valorização do empoderamento feminino. As homenagens foram promovidas pelos deputados estaduais Kitty Lima (Cidadania) e Iran Barbosa (PT).
As duas Comendas foram criadas por iniciativa da ex-deputada Ana Lúcia (PT) que apresentou dois projetos de resolução, apreciados e aprovados pelos demais pares. Falando em nome da Alese, o deputado Iran Barbosa demonstrou satisfação em prestar tributo à trajetória de luta de homens e mulheres que, em nossa terra, dedicaram-se e dedicam-se, com seu trabalho cotidiano, seu exemplo e seu protagonismo, à construção de um novo paradigma para o estabelecimento das relações sociais, ainda ampla e profundamente assentadas na violência da estratificação racial.
“A barbárie do racismo, pedra fundamental da iniquidade e da injustiça social que se perpetuaram na constituição de nosso país, frauda a memória histórica, contamina a formatação da vida nacional e interdita qualquer possibilidade de construção republicana e democrática. A absurda concepção supremacista insiste, entretanto, ainda hoje, em impregnar de ódio a existência de milhões de cidadãs e cidadãos brasileiros”, criticou o deputado.
Iran Barbosa ainda acrescentou dizendo que é impossível não relacionar os navios da diáspora africana, o tráfico de carne e almas, as correntes e os pelourinhos do martírio histórico do povo negro com o extermínio contemporâneo operado na periferia de nossas cidades, com os dados vergonhosos que atestam a exclusão da grande maioria dos brasileiros.
“A insanidade racista ainda nos mantém todos reféns. A apropriação do Estado pela elite econômica brasileira sempre foi marcada, e amparada, pela normalização da violência como instrumento de controle e dominação. Nosso espaço social continua constituindo uma armadilha mortal para mulheres e homens negros. Os encurralados nas senzalas dos engenhos permanecem encurralados nas vielas de Paraisópolis e do Brasil a fora”, completou o deputado.
Minuto de silêncio
Em um dos momentos mais marcantes da solenidade, Iran Barbosa prestou uma homenagem aos nove jovens que foram assassinados na “tragédia de Paraisópolis”, no último final de semana. “Marcos Paulo Oliveira dos Santos, Denys Henrique Quirino da Silva, Dennys Guilherme dos Santos Franca, Gustavo Cruz Xavier, Gabriel Rogério de Moraes, Mateus dos Santos Costa, Luara Victória de Oliveira, Bruno Gabriel dos Santos, Eduardo da Silva. Em memória desses sonhos interrompidos e de tantos outros silenciados a cada instante, peço um minuto de silêncio”.
Homenageados
Ao receber a Comanda Jacinta Clotilde da deputada Kitty Lima, Valdilene Oliveira Martins, agradeceu a Deus pela oportunidade e não escondeu sua satisfação. “Pela história de Jacinta, por tudo o que ela enfrentou. Imagine se hoje, nós mulheres enfrentamos, imagine ela, lá atrás? Somos um recorte da mulher negra e essa homenagem serve de combustível para a gente continuar lutando. Ainda estamos na base da pirâmide”; quem também recebeu essa Comenda (indicada por Kitty) foi Clarissa Marques Santos França. “Eu não sou fruto da minha luta, mas da luta histórica do mundo negro. Passamos por várias coisas já e continuamos passando. Sou negra, sou brasileira e quero ter os meus direitos garantidos”;
Ainda por indicação de Kitty, Iza Jackeline Barros da Silva pontuou que se mantém firme na luta e que jamais será fácil. “Agradeço a Deus por ele sempre acreditar em mim, por fazer com que essa revolução viesse para dentro de mim, para dentro da periferia, em uma sociedade hipócrita, machista e racista”; indicada pelo deputado Iran Barbosa, Edinéia Tavares Lopes focou na importância da Educação. “Sou do estado do Mato Grosso e estou aqui desde 2006 quando os sergipanos me acolheram. Aqui eu procuro desenvolver várias atividades nos Campi da UFS de Laranjeiras e São Cristóvão. Essa homenagem reforça o quanto o povo sergipano é bondoso”.
Também indicada por Iran Barbosa, Ligia Maria da Silva Borges destacou o “momento impar” para o recebimento da Comenda e pontuou que Jacinta foi mais uma mulher negra que viveu da invisibilidade. “Sinto-me representada pela história de Jacinta, ainda mais no momento em que a nossa democracia está em risco com o capitão do mato! O nosso foco não pode ser desviado e não podemos lutar contra nós mesmos, mas contra esse governo que reforça o racismo e extermina mais as nossas vidas”.
Já Silvânia Correa de Moura também fez diversos agradecimentos e lembrou de sua trajetória, mais precisamente em 2008, quando foi eleita a primeira vereadora quilombola de Sergipe, com apoio do então deputado federal Iran Barbosa; Sônia Oliveira Santos registrou que em sua casa todos militam e trabalham contra o racismo, reconhecendo o espaço que toda mulher pode ocupar. “Esta Casa (Alese) se abre para a gente reivindicar nossos direitos e mais equidade. Somos diferentes e queremos ser, mas o nosso direito é igual”; já Tereza Cristina Santos Martins focou em seus ancestrais que foram escravizados e na continuidade da luta, dos que trazem no sangue “o fervor da liberdade, da igualdade e da justiça”.
Já entre os que receberam a Comenda Abdias Nascimento, Alexis Magnum Azevedo disse que não é acostumado a receber homenagens, que é perseguido e criminalizado por sua atividade na luta por consciência negra. Ele reconheceu que tem muito que aprender, agradeceu e colocou que a militância não é feita para ganhar prêmios, mas para defender causas sociais. Outro homenageado que se manifestou foi João Bosco Santos. “Quero parabenizar a Alese por manter essa Comenda que representa sim a resistência. Devo a minha mãe a sabedoria e a persistência para conviver com o racismo diariamente”.
Outro que se manifestou foi Carlos Augusto Santos da Conceição. Ele pontuou que no Brasil os militantes negros lutam contra o “óbvio”. “É óbvio que existe racismo aqui! Somos um País excludente. Falamos disso há muito tempo. Infelizmente existe uma elite racista que nega isso o tempo todo. Não é mimimi e nem vitimismo”; já Paulo Victor Purificação Melo fez uma agradecimento especial a sua mãe e sua avó e disse que “eu fui educador para o amor e a liberdade, e não como fazem do País, educando para o ódio, a violência e a intolerância”, disse, destacando que a intelectualidade negra e a militância se confundem.
Jacinta Clotilde
Por iniciativa da então deputada Ana Lúcia, a nossa Assembleia Legislativa instituiu, em 2018, a “Comenda Jacinta Clotilde do Amor Divino”, como parte das celebrações do Dia da Consciência Negra, um merecido reconhecimento a personalidades femininas que desenvolveram contribuição relevante à proteção e à promoção da cultura afro-brasileira em Sergipe. A patronesse da Comenda, Jacinta Clotilde do Amor Divino, nasceu escrava, no município de Estância, em 1811, e simboliza a rara capacidade de superar as limitações impostas pela estrutura de uma sociedade escravocrata.
Abdias Nascimento
Já Abdias do Nascimento é um símbolo de vigor intelectual e da resistência negra. O ativista social, parlamentar, professor, artista plástico, dramaturgo, escritor, entre tantos talentos, nasceu em 1914, na cidade paulista de Franca. Figura fundamental do movimento negro no Brasil, ainda na década de 30 integrou a Frente Negra Brasileira, organização pioneira na luta contra a discriminação racial, atividade que lhe custaria a prisão durante a ditadura de Vargas.
Considerado um dos maiores expoentes da cultura negra no Brasil e no mundo, fundou entidades pioneiras como o Teatro Experimental do Negro (TEN), o Museu da Arte Negra (MAN) e o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO). Foi um idealizador do Memorial Zumbi e do Movimento Negro Unificado (MNU) e atuou em movimentos nacionais e internacionais como a Ação Integralista Brasileira, a Frente Negra Brasileira, a Negritude e o Pan-Africanismo.
Fotos: Jadílson Simões