Na cadência dos tambores invisíveis da história, mais uma vez o Auditório da Escola do Legislativo Deputado João Seixas Dória (Elese) se transformou em palco de memória, ancestralidade e saber. Na manhã desta quinta-feira (25), o projeto “Quintas Negras” abriu suas portas para um mergulho nas raízes culturais do Brasil profundo, com a palestra “Forrobodó: uma expressão literária afro-brasileira”, ministrada pelo professor doutor Hernany Donato.
O encontro, marcado pela presença vibrante de alunos do Centro de Excelência Atheneu Sergipense e do Centro de Excelência Governador Djenal Tavares Queiroz, ambos de Aracaju, revelou-se uma aula viva sobre pertencimento, resistência e reinterpretação histórica. O projeto, que é uma iniciativa da Coordenadoria de Assuntos Culturais da Elese, se consolida como espaço de valorização da cultura negra sergipana e brasileira, oferecendo ao público jovem um contato direto com saberes que muitas vezes não encontram espaço na sala de aula tradicional.
O convidado
Com formação em Letras Vernáculas, mestrado em Literatura e doutorado em Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), o professor Hernany Donato é pesquisador da cultura popular com olhar crítico e propositivo. Em sua fala, ele provocou reflexões sobre a narrativa dominante que tenta atribuir origens estrangeiras ao forró, desconectando-o de suas verdadeiras raízes afro-brasileiras.
Uma tese que nasce da inquietação
“Minha pesquisa nasce de uma inquietação antiga. Sempre me incomodou essa explicação repetida de que o forró viria da expressão inglesa ‘for all’ ou até do francês ‘faux bordeaux’. Essas teorias não dialogam com a realidade do povo nordestino. Elas partem de uma perspectiva eurocêntrica, que tenta encontrar fora do Brasil o que nasceu aqui, no chão, na vida e na resistência do povo negro.”
A descoberta de Laudelino Freire
“Foi ao estudar os dicionários antigos que encontrei uma chave importante para minha tese. O sergipano Laudelino Freire, natural de Lagarto, define o forró como ‘baile, confusão, alegria, musicalidade’, até aí, tudo dentro do senso comum. Mas o que me chamou atenção foi o acréscimo que ele faz no final: ‘sarau contrário aos ricos’. Isso muda tudo. Essa definição mostra que o forró não era apenas uma festa, mas um espaço político, de enfrentamento simbólico, um lugar de afirmação popular, especialmente entre negros e pobres. Era o que não se fazia nos salões da elite. Isso me deu o ‘start’ para desenvolver a tese de que o forrobodó é, sim, uma expressão literária afro-brasileira.”
O forrobodó como literatura viva
“O forrobodó é mais do que música. Ele é literatura viva, construída na oralidade, nos versos improvisados, nas narrativas do cotidiano. É dança, é poesia, é resistência. E por que não considerá-lo uma forma de literatura? Por que ainda resistimos tanto a reconhecer a produção cultural do povo negro como legítima, intelectual, profunda? Grande parte da população brasileira, historicamente, é negra. Mas as histórias que aprendemos ainda são contadas a partir de lentes europeias. A ciência precisa rever essas narrativas. O forrobodó não é invenção importada. Ele é fruto da experiência do povo brasileiro, da mistura, da dor, da alegria e da luta.”
Luiz Gonzaga: símbolo da ancestralidade popular
“E quando a gente fala de forró, é impossível não falar de Luiz Gonzaga. Ele é a base. Filho de agregados de terra, viveu numa fazenda em Pernambuco, onde a família tinha moradia e comida em troca de serviços. Isso revela uma origem profundamente popular, marcada pela exclusão social e, sim, pela ancestralidade negra.
Quando ele chega ao Sudeste, enfrenta preconceito. Mas sua arte fala mais alto. Luiz Gonzaga se torna referência obrigatória para toda a música popular brasileira. Ele elevou o forró à categoria de identidade nacional. E, ainda assim, muitos desconhecem suas origens e o contexto social de sua vida.”
Um projeto necessário para a juventude
“Por isso é tão importante estarmos aqui hoje, nesse espaço de escuta e de troca. Projetos como o “Quintas Negras” são fundamentais. Porque a escola muitas vezes não consegue, por limitação de tempo e currículo, aprofundar essas temáticas. E esse espaço aqui, no centro da cidade, permite que a juventude se veja, se ouça, se compreenda. O que a gente precisa é disso: de jovens que saibam que o forrobodó é deles. Que saibam que a cultura não está só nos livros, mas também na fala da avó, no coco de roda, no aboio, no repente. É isso que constrói o Brasil. E é isso que precisa ser valorizado como patrimônio e como saber acadêmico também.”
Educação que transborda os muros da escola
A oportunidade de estar presente no evento foi celebrada pelas professoras de Artes das duas escolas públicas estaduais, que acompanharam seus alunos com entusiasmo.
A professora Rafaella Clarice Rodrigues Santos, do Atheneu Sergipense, destacou a importância da vivência prática para a formação dos estudantes:
“É muito importante estarmos aqui hoje. Agradecemos imensamente o convite da Escola do Legislativo, porque sabemos o quanto esses momentos são valiosos para a formação dos nossos alunos. No cotidiano da sala de aula, fazemos o possível para trabalhar a cultura, a história e as artes de forma interdisciplinar, mas quando saímos do espaço escolar e trazemos os alunos para vivências como essa, tudo ganha uma nova dimensão. O evento de hoje não é apenas uma palestra. É um encontro com as raízes, com a oralidade, com a musicalidade e com a literatura do povo negro. O tema do ‘forrobodó’ nos possibilita enxergar a cultura nordestina com novos olhos. Ao ouvir o professor Hernany, percebemos que o forró, que muitas vezes é encarado apenas como entretenimento, carrega um sentido de resistência, de identidade e de luta. Ver os estudantes atentos, ouvindo, refletindo e fazendo perguntas, é um grande sinal de que estamos no caminho certo, de que essas iniciativas precisam continuar. Eles não apenas aprendem sobre cultura; eles aprendem sobre si mesmos. E isso é fundamental para a construção da autoestima e da cidadania dos nossos jovens.”
Já a professora Eva Cardoso, do Centro de Excelência Governador Djenal Tavares Queiroz, ressaltou o impacto pedagógico da atividade:
“Esse momento de sair da sala de aula é extremamente importante. Na escola, nós fazemos um trabalho contínuo para despertar o interesse dos alunos pela arte e pela cultura, mas quando eles têm a oportunidade de vivenciar isso em outro espaço, como aqui na Escola do Legislativo, o aprendizado se torna ainda mais profundo e significativo. Hoje, ao ouvirem o professor Hernany falar sobre o forrobodó como uma expressão da identidade negra, nossos alunos entram em contato direto com um conhecimento que vai além da teoria: é um conhecimento vivido, que toca, que provoca, que transforma. Ver o auditório cheio, os estudantes concentrados, atentos, absorvendo cada palavra, nos emociona enquanto educadores. Isso mostra que há sede de saber, que há interesse, que há uma juventude pronta para se reconectar com suas raízes. E para nós, enquanto professoras de arte, isso é motivo de orgulho e também de esperança. A valorização da cultura nordestina e afro-brasileira precisa ocupar cada vez mais os espaços formais de ensino. Quando eventos como o “Quintas Negras” se colocam como aliados da escola, o que temos é uma verdadeira revolução do aprender.”
Juventude que escuta, aprende e se reconhece
Para o estudante Edson Santana Viana Júnior, a experiência foi mais do que uma simples saída da escola, foi um momento de conexão com suas raízes.
“Estar aqui hoje é algo muito especial para mim. Eu acredito que a gente aprende de verdade quando consegue viver aquilo que estuda. E esse momento representa exatamente isso: a possibilidade de vivenciar a cultura, de ouvir um pesquisador que se dedicou a estudar a fundo algo que faz parte da nossa identidade, da nossa história. A escola já vem trabalhando bastante a valorização da nossa cultura, e isso tem feito com que muitos de nós passemos a nos enxergar com mais respeito, com mais orgulho da nossa origem. Mas quando saímos da sala de aula e temos esse tipo de experiência, tudo fica ainda mais claro. A gente sente. A gente se reconhece. A gente entende que a cultura não está só nos livros, ela está na música, na dança, nas histórias contadas pelos nossos avós, nos festejos populares. Participar do “Quintas Negras” é, para mim, um passo importante na construção da minha identidade. É entender que a cultura negra não é apenas parte do passado, ela está viva, pulsa, e precisa ser valorizada todos os dias. Isso tem tudo a ver com o que somos, com a nossa autoestima, com o nosso sangue. E eu espero que mais jovens possam ter essa mesma oportunidade, porque isso muda a forma como a gente se enxerga no mundo.”
“Quintas Negras”: um espaço de (re)existência cultural
O coordenador de Assuntos Culturais da Elese, Beneti Nascimento, lembrou que o “Quintas Negras” nasceu com o propósito de fomentar o debate sobre a cultura negra em Sergipe, criando pontes entre a escola pública e o conhecimento produzido por estudiosos e artistas locais.
“A proposta do “Quintas Negras” é justamente essa: trazer para o centro do debate a cultura, o saber, a memória e a presença do negro na construção do nosso Estado e do nosso país. Hoje, com a presença do professor Hernany Donato, oferecemos aos alunos do Atheneu e do Djenal uma aula que vai muito além do currículo escolar. Aqui, eles entram em contato com saberes que a escola, por limitações de tempo e conteúdo, nem sempre consegue abarcar. E é isso que faz esse projeto tão necessário.”
Fotos: Joel Luiz / Agência de Notícias Alese










